Sábado, 19h. O celular toca. Acordo meio ressacado. Do outro lado da linha, uma voz cambaleante pergunta: “Presidente ou presidenta?”. Era um amigo querendo saber como deve ser tratada a primeira mulher a presidir o país. Ele estava numa peleja gramatical com outro amigo, que insistia em desqualificar o uso da forma feminina. A polêmica surgiu por causa de um e-mail a que os dois tiveram acesso. Nele, ridicularizava-se a forma feminina com base no seguinte argumento: se se diz "presidenta", por que não "contenta"? Acrescentava-se ainda que também se deveria dizer "presidento contento".
E o que você tem a ver com isso?, pergunta o leitor. A princípio, nada. O problema é que trago comigo o eterno karma de ter dado umas aulinhas básicas de língua portuguesa. Então algumas pessoas – incluindo meu amigo - acha que tenho alguma autoridade nesse campo. Coitados! Há muito tempo que larguei esse terreno movediço das certezas gramaticais. Depois da reforma ortográfica e de conhecer alguns trabalhos de lingüistas como Marcos Bagno e Sírio Possenti, percebi que o buraco é bem mais embaixo.
Mas, em respeito ao velho ditado “amigo é para acudir outro”, não podia me furtar a essa responsabilidade. Então fiz o que qualquer leigo faria em meu lugar: pesquisei o tema – que, aliás, já era recorrente na mídia – e busquei a opinião de autores minimamente confiáveis. Fui além da internet, é claro, já que a rede normalmente é uma armadilha. Foi aí que descobri o que já desconfiava: trata-se de uma falsa polêmica. No fundo, ela tem mais a ver com preconceito social do que propriamente com questões da língua. Afirmar isso, porém, infelizmente não resolve o problema.
Então vamos ao que interessa. Na verdade, não há norma na língua que defina uma das formas como errada ou menos correta. Segundo Pasquale Cipro Neto, a terminação “nte” vem do latim e é comum nas línguas neolatinas, como o português, o espanhol e o italiano. Ela indica o executor ("agente") de uma ação, normalmente tornando a palavra invariável quanto ao gênero. Por isso, dizemos “o gerente” para homens e “a gerente” quando uma mulher ocupa a função. É o que em português chamamos de substantivo comum de dois gêneros. A mesma coisa ocorre com "pedinte", "fluente", "caminhante", "dirigente" etc. Normalmente essas palavras têm forma fixa, isto é, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é o artigo (o/a gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte).
Em alguns (raros) casos, o uso fixa como alternativas as formas exclusivamente femininas, em que o "e" final dá lugar a um "a". Um desses casos é o de "parenta", forma exclusivamente feminina e não obrigatória (pode-se dizer "minha parente" ou "minha parenta", por exemplo). No caso de ‘presidenta’, surgiu esse uso feminino do termo, que os dicionários acolheram, diz Pasquale. Ora, se o Houaiss, o Aurélio e o Aulete já registram ‘presidenta’ como equivalente de ‘a presidente’, ‘mulher que preside’, então só podemos concluir uma coisa: as duas formas estão corretas. Mesmo soando mal. Mesmo parecendo estranho aos ouvidos. E não adianta reclamar, porque a língua não é algo estático, mas dinâmico.
Como observa Sírio Possenti, “a língua funciona muito na base do costume”. Segundo ele, a maioria absoluta dos brasileiros tem uma idéia equivocada do que seja uma língua. Muitos acham que a língua é a que a escola ensina, ou o que está nos manuais do tipo "não erre mais". Todos consideram que as variantes são erros. No caso de “presidenta”, a novidade não é a forma feminina. A novidade é uma mulher no cargo. A questão, portanto, se tornou um pequeno falso dilema. O tal e-mail, fonte da polêmica entre meu amigo e outro amigo dele, deve ter sido feito por um analfabeto - pelo menos em morfologia e em lexicologia.
Notem bem: não sou em quem diz isso, é Sírio Possenti, um dos maiores lingüistas do país. Para ele, os argumentos usados no e-mail são fracos. Não é porque não se diz "gerenta" que não se diz "presidente" ou "parenta". No domínio do léxico, as irregularidades são muitas. E as formas se fixam ou não se fixam em razão do que uma sociedade considera necessidade. Mas, principalmente, do fato de que se diga "presidenta" não decorre que se diga também "contenta" e, muito menos, que se diga "presidento". Se todas as palavras masculinas devessem terminar em "o", teríamos que dizer "dar tiros de revólvero", "beber umas no baro", servidos por um "garçono", enquanto vemos um jogo de "futebolo".
A lição que fica disso tudo é a seguinte: a língua viva é a língua do mundo real, do dia a dia. Às vezes é preciso separar gramática e realidade. Como observa Sírio, “a existência ou não de correspondentes femininos gramaticais de formas masculinas é um efeito, mas não uniforme, da existência de alguma correspondência no mundo”. E explica: “certamente não haveria a forma parenta se só houvesse parentes masculinos. Por outro lado, o fato de haver algum tipo de distinção no mundo não cria necessariamente formas gramaticais específicas que lhes correspondam. Usamos parenta, mas não usamos tenenta. E pouco se usa sargenta”. É isso, meu caro amigo.
Ivandro Coêlho, jornalista.
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